Juan Villoro: Da Tradução Enquanto Efeito Pessoal
A produção do ensaísta, romancista e jornalista Juan Villoro tem alguns motivos e formas que a atravessam transversalmente: a relação com o outro (alteridade), o entrocamento entre um impulso autobiográfico com o do ensaio crítico e, sobretudo, as contradições em torno da construção de uma identidade nacional coletiva mexicana. Talvez o título de um de seus livros, Efectos Personales (2001), exemplifique com maior exatidão o pensamento do crítico que reúnem os diferentes e lugares e registros com os quais opera: o que é da ordem individual, mesmo que não seja a essência, pode apresentar muito sobre o caráter de um indivíduo. Nas palavras do autor, no prefácio da obra:
Los ensayos literarios se ocupan de voces ajenas, delegan las emociones y los méritos en el trabajo de los otros; sin embargo, incluso los más renuentes a adoptar el tono autobiográfico delatan un temperamento. Como los efectos personales, entregan el retrato íntimo y accidental de sus autores (Villoro, 2001, p. 8).
O impacto da ideia de um “efeito pessoal” desempenha papel fundamental na estruturação dos textos de Villoro. No caso do livro supracitado, tem-se como principal marco a conjunção entre episódios da vida pessoal do autor com a obra dos autores analisados nos ensaios. Não obstante, tais episódios trazem em seu bojo, como pano de fundo, episódios históricos ocorridos no México e nos países latino-americanos como um todo entre finais do século XX e início do século XXI, como o caso de 8.8 El Miedo en El Espejo (2010), texto que desenvolve uma série de reflexões tendo como partida o terremoto ocorrido no Chile em fevereiro de 2010, que apresenta um jogo constante entre os testemunhos das vítimas e da reportagem investigativa com fatos autobiográficos de Villoro da revolta zapatista que dá início a El Rey Duerme, também de Efectos Personales, que serve de cenário para a reflexão sobre a tradução de Tomás Segovia de Hamlet, e consequentemente, os impasses enfrentados pelo tradutor latino-americano.
Esse último núcleo presente no ensaio centrado na tradição da tragédia shakesperiana pode ser considerado um do principais topos desenvolvidos pelo crítico mexicano, gerando pelo menos dois textos que apresentam reflexões de teor similar: os ensaio El Traductor (2000) e Te Doy Mia Palabra (2013), no qual nos debruçaremos no presente texto. O que sobrejaz nk é uma teoria da tradução na qual o ato de traduzir seria um “pacto entre fantasmas”, no qual tanto o autor quanto o tradutor são colocados no campo do fantasmagórico, dando prioridade ao texto. Em outras palavras, tal operação crítica põem o fazer literário (do autor) e a tradução no mesmo patamar, apresentando uma concepção na qual ambos são capazes de passar por cima de sistemas e de expressões nacionais e desenvolver uma exposição de “efeitos pessoais”. Destaca-se, nesse ínterim, a influência das concepções tradutórias apresentadas por Walter Benjamin, em A Tarefa do Tradutor, e George Steiner, em Depois de Babel. Como escreve Villoro, “Más que un pacto entre realidades se sella un pacto entre fantasmas. No es casual que la traducción se haya asociado con la transmigración de las almas” (Villoro, 2013, p. 14)
Para desenvolver tal questão, o ensaio pode ser dividido em dois grandes blocos: um primeiro no qual tem-se a apresentação de uma narrativa autobiográfica, no caso, o contato com a língua alemã durante a infância no Colegio Alemán de La Ciudad do Mexico e as relações desenvolvidas com o idioma posteriormente, sendo as principais rebeldia contra ele e a paixão pela sua literatura, e um segundo centrado no desenvolvimento da teoria propriamente dita. Do primeiro bloco, o destaque central fica para a relação desenvolvida com o autor através do contato entre duas línguas na infância, colocando desde este momento a ideia de traduzir como um passeio por um “bosque enfeitiçado”, através da citação do episódio da primeira canção alemã com a qual teve contato, Hänschen klein, Escreve Villoro:
He olvidado muchas cosas de ese tiempo, pero no el estupor esencial de ese niño que se adentra en el mundo en soledad: “Hänschen klein ging alein in die ganze Welt hinein”. El bosque del conocimiento semejaba un sitio oscuro, cargado de peligros. La canción narra la errancia de Juanito durante siete años. Su madre llora de manera inconsolable mientras él vaga por el mundo. Cuando finalmente regresa a casa, su hermana no lo reconoce. (Villoro, 2013, p. 9)
A centralidade de tal fragmento é a analogia realizada pelo autor entre a canção e o processo de formação, no qual tem-se o estabelecimento de dois momentos, um primeiro no qual o bosque é descrito enquanto um “sitio oscuro, cargado de peligros”, mas, em um segundo momento, é colocado pelo autor no campo de um “bosque de signos”, o qual instiga o desejo de explorá-lo1. Tal virada, conforme descrito na narração do episódio, ocorre a partir de uma mudança ocorrida na relação de Villoro com a língua alemã, antes vista como algo imposto durante o período escolar, mas, após o contato com a literatura produzida em língua alem, em especial Franz Kafka, Henrich Böll e Bertolt Brecht, mencionados pelo autor como alguns dos que se converteram em seus autores favoritos, e, sobretudo Günter Grass que, reconduzidram o autor ao idioma aprendido nos tempos da escola. Retoma-se aqui uma ideia já apresentada no ensaio El Traductor, na qual o exercício de traduzir relaciona-se diretamente ao campo do desejo e da liberdade.2
É tomando essa espécie de “ideal erótico” que está por trás da tradução que o núcleo teórico do texto é desenvolvido, como demonstra no comentário realizado sobre um capítulo do romance O Tambor, na qual a uma analogia entre o corpo de uma mulher e um bosque, mesmo local que é relacionado anteriormente no texto a infinidade de possibilidade simbólicas as quais o local outrora relacionado a interdição e a opressão o trouxe. A assimilação entre o processo tradutório com a penetração no texto, e, consequentemente, em outro idioma retoma a ideia benjaminiana na qual a tradução é, sobretudo, “uma forma. Para apreendê-la como tal, é preciso retornar ao original. Pois nele reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua tradutibilidade” (Benjamin, 2011, p. 102), ou seja, um processo de recriação e ressignificação do original. Soma-se à leitura da tradução, oriunda de Steiner na qual existe a impossibilidade de uma tradução que capte todos os aspectos do original, mas ao mesmo tempo, celebra o potencial criativo da atividade3. Como escreve o crítico:
A “tradução” adequadamente entendida é um caso especial do arco da comunicação que cada ato de linguagem bem-sucedido fecha no interior de uma dada língua. [...] há “no meio” uma operação de decifração interpretativa, uma função codificadora-decodificadora, uma sinapse” (Steiner, 2005, p. 72)
Para Villoro, tais concepções são fundamentais durante o procedimento de leituras de traduções, vide, sobretudo, a maneira com a qual utiliza para valorar as traduções que Jorge Luis Borges realizou do conto Las Muertes Concéntricas, de Jack London, na qual a leitura realizada pelo romancista teria criado “en español una tension estilistica muy superior a la del novelista de aventuras. Las rapidas frases de London adquirieron el tono de una saga épica” (Villoro, 2013, p. 14). Demarca-se aqui o núcleo da teorização do ensaísta mexicano sobre o procedimento tradutório, ou seja, um ato no qual é permitida a coexistência em relação ao outro, como um ato de alteridade através de uma série de procedimentos de ressignificação que a obra perpassa através da leitura. Como diz o ensaísta:
Toda versión tiene algo impuro. No existe la lengua neutra. Sin embargo, es posible aspirar a un tono común. El reto se complica cuando el texto en cuestión pone en juego un lenguaje improvisado, roto, inconexo y coloquial, que sigue el desordenado fluir de la conciencia. (Villoro, 2013, p. 22)
É neste ponto que a concepção de tradução apresentada por Villoro aproxima-se da noção de um “efeito pessoal”. Assim como nos ensaios em que o crítico mexicano desenvolve uma leitura de autores tendo como epicentro do regime de historicidade o momento de escrita da leitura, sendo circunscritos dentro das visões e percepções de mundo do autor, a tradução, através do seu aspecto “impuro”, desempenharia um papel fundamental na apresentação dos efeitos pessoais do tradutor. Nessa homologia entre a escrita, o ensaio e a tradução enquanto formas moldadas por esses efeitos é que se desenvolve o principal exercício de leitura do outro, propondo, no nível da discussão das identidades nacionais, a ideia da tradução enquanto forma de contato e leitura de outros regimes culturais.
BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIN, Walter. A Tarefa do Tradutor. In. Escritos Sobre Mito e Linguagem. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2013.
GROTTO, Lívia. Villoro: un itinerario en la traducción. In. Estudios de Teoría Literaria, v. 7, p. 111-123, 2018
VILLORO, Juan. Efectos personales. Barcelona: Anagrama, 2001.
VILLORO, Juan. “Te doy mi palabra: un itinerario en la traducción”. Verbum et lingua, Universidad de Guadalajara, 1 (1): http://verbumetlingua.cucsh.udg.mx/articulo/te_doy_mi_palabra_un_itinerario_en_la_traduccion (acessado em 05/07/2024)
STEINER, George. Depois de Babel: Questões de Linguagem e Tradução. Curitiba: Editora da UFPR, 2005.
“El pavor que me producía ser un niño perdido para siempre se transformó con los años en el deseo de explorar por mi cuenta un bosque cargado de significados” (Villor, 2013, p. 11)
Escreve o autor “En las alcobas de la literatura, la noción de fidelidad se parece bastante a la de los grandes libertinos: la obtención de un placer verídico justifica la transgresión de las normas. La ciega obediencia está reñida con la traducción literaria [...] Las pasiones del idioma exigen que se llegue a ellas por la ventana prohibida, según el método de Casanova” (Villoro, 2001, p. 121)
“En otras palabras: disponemos de un instrumento aproximativo y cambiante para decir lo que pensamos. La lengua es dúctil y cambia tanto como sus usuarios. Es por ello que en su célebre ensayo sobre la traducción, tan hermético que Steiner lo considera un texto gnóstico, Walter Benjamin juzga que las malas traduccion es "comunican demasiado". La lengua de llegada debe transmitir el significado del mensaje original. En sentido riguroso, esto significa preservar el misterio, la ambigüedad, el desconcierto que produce un estilo literario. La Ur-Sprache (la lengua. primigenia) en la que se basa el traductor también depende de vacilaciones, rarezas, malentendidos, sobreinterpretaciones, alu- siones vagas, puntos negros del idioma. La estética de Samuel Beckett demuestra que la confusió” (Villoro, 2013, p. 13)